domingo, 9 de setembro de 2012

Querido Estado (por João Machado Durão)


Uma carta ao Estado de um amigo meu, João Durão Machado, que subscrevo inteiramente uma vez que trabalho desde 1989.

Querido Estado,
Ouvi dizer que cada português deve €17.000 aos nossos credores, que nunca ninguém diz quem são. Parece que este drama se deve à imprudência com que os governos e, sobretudo, o povo se andaram a comportar, vivendo acima das suas possibilidades e gastando mais do que
 podiam.
Também compreendo que os sacrifícios que se impõem para ultrapassarmos esta grave situação não podem ser distribuídos por todos da mesma maneira; EDP, GALP e outras grandes empresas têm até recebido o prémio de estarem a ser poupadas aos sacrifícios, o que se deve, evidentemente, a terem feito uma gestão prudente e eficaz das suas contas durante os anos que antecederam a presente crise.
Dentro da mesma lógica, tenho a dizer que, nos tempos da fartura, eu próprio fui tendo bastante cuidado com as minhas finanças pessoais, uma vez que trabalhei cerca de dez anos em condições sub-precárias, por assim dizer. A saber, mal pago, sem contrato, sem descontos para a Segurança Social (a não ser os que eu próprio fiz), sem entidade patronal, sem subsídios de férias nem de Natal, recebendo nove, dez e, às vezes, onze salários anuais. Durante este tempo, fui trabalhador-estudante, pois acreditei na importância da minha formação para um futuro melhor para mim e para a sociedade que integro. Todos os dias, levantei-me às seis da manhã, saindo cedo da minha "zona de conforto" para, entre longas caminhadas e trajectos de combóio, poder acumular o trabalho e os estudos. Ainda assim, durante esta época de bonança, consegui juntar uma pequena poupança, que ainda conservo.
Assim, venho propor o seguinte: eu pago a minha parte da dívida e, em troca, tu passas a pagar-me os subsídios de Natal e de férias, passas a actualizar as minhas remunerações de acordo com a inflação, repões o IVA nos 17% em que estava, integras-me no quadro da escola em que trabalhei mais de três anos consecutivos a tempo inteiro (cumprindo, assim, uma lei criada por ti e a que te tens, por alguma razão que desconheço, esquivado), repões o meu horário de trabalho como ele era dantes, reduzes a minha taxa de IRS para o nível em que anteriormente estava, repões o direito que tinha a deduzir em sede de IRS as despesas de saúde, educação e amortização do capital em dívida de crédito à habitação, e crias duas empresas públicas de distribuição de energia e de comercialização de combustíveis fósseis que funcionem nas mesmas condições monopolistas e abusivas em que, outrora, GALP e EDP operavam (só que, desta feita, vão ter de fazer-lhes concorrência). Por último, repões o abono de família entretanto retirado, para que a minha filha possa, mais tarde, emigrar e aliviar o país da saturação do mercado de trabalho. Ao fim de dez anos, é capaz de dar para um bilhete de avião só de ida.
Que tal?
Com o encaixe financeiro que espero conseguir, se não me der para esbanjar tudo em férias no Pacífico Sul e carros de alta cilindrada, em pouco tempo terei dinheiro suficiente para te ajudar a construir a quarta auto-estrada Porto-Lisboa, a terceira auto-estrada Sertã-Odemira ou o Estação Espacial Inter-planetária de Palmeira-Frossos!
Teu criado sem préstimo,
João Durão Machado

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