segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O que desejei às vezes

O que desejei às vezes 
Diante do teu olhar, 
Diante da tua boca! 

Quase que choro de pena 
Medindo aquela ansiedade 
Pela de hoje - que é tão pouca! 

Tão pouca que nem existe! 

De tudo quanto nós fomos, 
Apenas sei que sou triste. 



António Botto
Aves de Um Parque Real
As Canções de António Botto
Editorial Presença
1999

sábado, 29 de agosto de 2015

[Mas agora estou no intervalo em que]

Mas agora estou no intervalo em que
toda a sombra é fria e todo o sangue é pobre.
Escrevo para não viver sem espaço,
para que o corpo não morra na sombra fria.
Sou a pobreza ilimitada de uma página.
Sou um campo abandonado. A margem
sem respiração.
Mas o corpo jamais cessa, o corpo sabe
a ciência certa da navegação no espaço,
o corpo abre-se ao dia, circula no próprio dia,
o corpo pode vencer a fria sombra do dia.
Todas as palavras se iluminam
ao lume certo do corpo que se despe,
todas as palavras ficam nuas
na tua sombra ardente.
António Ramos Rosa, A Construção do Corpo, 1969