(...) Segundo Manuel Pedro Ferreira, “para mal dos
nossos pecados a necessidade de habitar um terreno musical próprio tem sido
reconhecida por muito poucos”. No momento de encontrar responsáveis o autor
recorre a figuras de retórica: “Os principais responsáveis por essa falta de
reconhecimento têm sido, segundo julgo, a tacanhez e o snobismo, qualidades que
vejo representadas, na minha galeria de tipos sociais, pelas figuras do desembaraçado
e do opinioso. [...] Para o desembaraçado, a música pode bem viver numa tenda,
desmontável à mínima tempestade orçamental. Para o opinioso, a boa arquitectura
sonora nasce das recensões fonográficas e dos escritórios dos agentes e
prescinde de alicerces. Ambos acham que os verdadeiros compositores são
super-homens cujo génio se manifesta independentemente das condições de
aprendizagem e exercício do seu ofício, ignorando que o desabrochar criativo
exige estímulos sociais e um diálogo permanente, através dos executantes com o
resultado sonoro” (Ferreira, 2007: 16).
Ferreira considera que “a comparação com a vida
musical de outros países europeus, conjugada com uma maior preparação técnica e
teórica dos organizadores musicais, possa vir num futuro próximo a sapar a
tradicional influência do snobismo e da tacanhez nacionais. Tal expectativa não
impede que essa influência tenha marcado de forma extremamente negativa o
século findo” (ibid.). Chegando a conclusões relativamente próximas, Paulo
Ferreira de Castro tinha afirmado na sessão comemorativa do Dia Mundial da
Música em 1991: “Confrontemo-nos de uma vez por todas com esta realidade brutal
e incompreensível num país que é parte integrante da Comunidade Europeia: a
esmagadora maioria da população portuguesa é absolutamente analfabeta em
matéria de música, porque o sistema escolar português é praticamente omisso em
matéria de formação geral nesta área”. Mais adiante: “O público português,
sobretudo o lisboeta – ou pelo menos uma parte significativa dele – é
seguramente o mais snob e ao mesmo tempo o mais ignorante da Europa”. E
prossegue: “Portugal tem, apesar de tudo, uma cultura musical antiga – quase
completamente desconhecida, aliás, do cidadão comum – [...] mas – e o facto
constitui motivo de verdadeira vergonha nacional – talvez nenhum outro país da
Europa preste tão pouca atenção à conservação e valorização do seu património
musical. Com excepção de algumas iniciativas da Fundação Calouste Gulbenkian, e
outras pontuais, da Divisão de Música da Direcção Geral da Acção Cultural
(nomeadamente da publicação aliás muito irregular de discos consagrados à
música portuguesa) e do Departamento de Musicologia do Instituto Português do
Património Cultural, muito pouco se tem feito no sentido de divulgar a herança
musical no nosso país, e mesmo o investigador especializado esbarra em
múltiplas dificuldades na tentativa de aprofundar o conhecimento desse sector
fundamental da cultura portuguesa” (Castro, 1991).
Quanto mais se avança nesta direcção mais facilmente
se chega a zonas profundas da sociedade portuguesa. Nos textos que acabamos de
ver, no momento em que se trata de apontar os responsáveis recorre-se
normalmente ao défice estrutural ou a figuras de retórica, evitando, deste
modo, a identificação explícita de responsáveis directos e uma análise de
práticas institucionais concretas. Paulo Ferreira de Castro aponta
responsabilidades genéricas ao analfabetismo musical do público, ao snobismo
lisboeta e à insuficiente acção dos organismos oficiais, e a interpretação de
Manuel Pedro Ferreira não identifica com total clareza os responsáveis da falta
de reconhecimento: “a situação do compositor em Portugal está, de resto, ligada
ao tratamento de que a Música em geral tem sido objecto, até há pouco, por
parte das instituições do Estado” (Ferreira, 2007: 14). Onde está a raiz deste
conjunto de problemas?
Nós – a
tacanhez – e os outros, in MÚSICA E
PODER – Para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto
europeu de António Pinho Vargas
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