A minha amiga e colega Cláudia Nelson enviou-me, em caixa de comentário do "Novo ensino especializado da música (8)", a sua reflexão sobre o tal relatório do Ensino Artístico. Pela sua importância e especificidade, com referências muito pertinentes em relação ao curso de Canto, resolvi publicar todo o comentário aqui em post.
Reflexão crítica sobre o Estudo de Avaliação do Ensino Artístico
Introdução
Relativamente ao documento em análise, não poderia deixar de ser referido e enaltecido o esforço feito pela tutela em analisar uma área que há tantos anos tem sido esquecida, negligenciada e abandonada. Este abandono a que esta área foi sujeita não pode é, de todo, ser atribuído a quem a ela se dedica e dedicou de corpo e alma, quer na vertente de investimento / formação / estudo / actualização / performance, quer na vertente de trabalho pedagógico. Quem fez uma opção desta natureza sabe que este compromisso é para a vida, não só porque materialmente dela dependa mas porque, acima de tudo, a música (e o seu estudo contínuo) é algo que passa a integrar a natureza do próprio músico, sem a qual este não vive, não se realiza ou sequer consegue ser feliz.
Há que destacar que, se por uma lado, o esforço de análise da matéria atrás referido é de louvar, já o de discussão não o parece ser, se não veja-se:
∙ a data de conclusão constante do estudo é a de "Fevereiro de 2007";
∙ o documento só esteve disponível para consulta no dia 21 de Março de 2007 - vinte e um dias depois;
∙ a data limite de discussão ou emissão de pareceres relativos ao estudo é 30 de Abril de 2007;
∙ o documento tem, aproximadamente, 350 páginas;
∙ os grupos disciplinares e/ou departamentos, do estabelecimento de ensino onde a docente se inclui tiveram de elaborar um parecer conjunto/síntese a apresentar até dia 18 de Abril de 2007, data de realização do Conselho Pedagógico desse estabelecimento de ensino;
∙ ainda que não fosse necessária a apresentação das sínteses no referido Conselho, restariam aproximadamente 40 dias para ler o documento, analisá-lo, discuti-lo e redigir um parecer.
Entre outros aspectos, depreende-se que um documento desta natureza, desta extensão, que levou quase um ano a elaborar, e que se reveste de uma importância tal teria de ser analisado, comentado e eventualmente enriquecido, num prazo muito mais dilatado do que um mês.
Um outro aspecto cuja referência parece ser pertinente é o facto de na equipa de docentes e investigadores que realizou este estudo de avaliação não estar integrado nenhum elemento directa ou indirectamente ligado à área em análise. Este aspecto é importante, não à luz da tão referida "especificidade" da música repetidamente enunciada no documento, porque explica e desculpa incorrecções, interpretações e acepções de termos e de conceitos relacionados com o tema e porque abre novas perspectivas profissionais aos músicos, que podem almejar incluir equipas de avaliação em campos tão diversos como os da engenharia, economia, sociologia, medicina, etc.
Passa-se, a partir desta pequena introdução, a abordar isoladamente alguns aspectos que pareceram ser assuntos fulcrais na elaboração deste relatório. Acrescenta-se que o Canto, por ser a área directamente ligada à autora desta reflexão, será a área a privilegiar em temáticas e comentários que lhe pareçam oportunos.
Quando houver referência a qualquer citação contida no documento registar-se-à apenas o número ou número da/s páginas citadas.
Génese do estudo de avaliação do ensino artístico e terminologia nele contida
Não podem deixar de referir-se a este propósito a falta de clareza, de rigor e de critério na utilização recorrente com diferentes acepções de certos termos que se pensa terem carecido de definições e de explicações prévias. Os exemplos mais óbvios relacionam-se com os termos: Ensino Artístico, Educação Artística, Ensino Artístico Especializado da Música, Ensino Vocacional da Música, Cursos Artísticos e De Natureza Artística, Ensino Especializado das Artes, disciplinas de foro artístico, etc.
Repetidamente, ao longo do trabalho, são usados dois ou mais termos distintos para designar uma mesma coisa, lançando uma confusão e uma imprecisão desnecessárias, que em nada abonam em favor de um estudo cujo objectivo primordial, de entre outros citados, é o da aferição de uma matriz orientadora comum por parte de todos os Conservatórios. Com que legitimidade se pode exigir esta prática, com a qual a autora desta reflexão se identifica, se se designam esses mesmos seis estabelecimentos de ensino usando cinco terminologias diferentes?
Passam a citar-se: Escolas Públicas de Ensino Vocacional de Música ( Quadro 2, p.143), Escolas Públicas do Ensino Especializado de Música (Gráfico 2, p.145), Conservatórios Públicos de Música ( Quadro 3, p.146), Escolas Públicas de Música (Quadro 10, p.153) Escolas Públicas do Ensino Artístico de Música (Quadro 11, p.153). Situação análoga poderá ser facilmente detectada em relação aos termos atrás referenciados.
Outro aspecto que não pode deixar de referir-se é o recurso, também sistemático, a expressões prenhes de um caráter e pendor "quase místicos" e com uma carga frequentemente negativa que se atribuem aos músicos, retratados sistematicamente de forma pejorativa, atrasada, corporativista e quase como se estes de uma "tribo" ancestral se tratassem. Passaremos a transcrever alguns:
∙ «Um dos grandes obstáculos à mudança, e aqui porventura com mais força e impacto que noutros domínios, reside justamente na facilidade com que se produzem, reproduzem e vulgarizam discursos e soluções pedagógicas sem que os respectivos subscritores de sintam obrigados a fundamentar e contextualizar as declarações que vão produzindo.» (p.6)
∙ «(...) procurar compreender os reais fundamentos de certas práticas que há anos estão instituídas, particularmente nas escolas públicas de Música e de Dança. Neste domínio, a investigação histórica e a investigação comparada revelaram-se fulcrais para que se pudesse descortinar a origem de algumas dessas práticas e rotinas instaladas, hoje tidas como naturais.» (p.7)
∙ «Esta equipa de avaliação quer começar a falar da possibilidade da discursividade artística, nos vários domínios em que se encontra decomposta, sair, pela mão da escola, dos núcleos assaz restritos que herdámos do século XIX e insistimos ainda em manter ao arrepio de todas as outras nações desenvolvidas.» (pp. 7/8)
∙ «(...) Estes são alguns factos que traduzem um lado necessariamente negativo da realidade que é hoje o ensino artístico especializado (...) Ou seja, parece urgente definir claramente as regras que devem organizar este sistema que, conforme mostram os dados deste estudo, está desregulado e parece não estar a obedecer a uma racionalidade que permita o seu normal funcionamento. Há uma variedade de modus operandi e de culturas que se foram institucionalizando aqui e ali, sem qualquer sustentação científica, pedagógica ou outra, e que se vêm perpetuando sem que se vislumbrem quaisquer vantagens para as instituições e para os seus alunos.» (p.22)
∙ «E são muitas e variadas as práticas que têm prevalecido, que aparecem como estratégias irrefutáveis e mesmo indiscutíveis, mas que não são mais do que modos de agir que não possuem qualquer fundamentação credível. Baseados em crenças. Quiçá respeitáveis. Mas apenas crenças.» (p.23)
∙ «A educação artística necessita de professores altamente qualificados que desafiem positivamente todos os estudantes e não só aqueles que são considerados como possuindo talento artístico.» (p.28)
∙ «O insucesso e a reprovação são considerados a regra e aceites como algo natural e absolutamente inevitável, em nome de uma “excelência” e de uma “qualidade” que não foi possível caracterizar.» (p.64)
∙ «A equipa de avaliação julga ter encontrado argumentos empíricos suficientes para mostrar como, entre nós, o ensino das artes se foi estruturando por fora do sistema educativo, as mais das vezes de forma arbitrária e casuística, isto é, sem nenhuma legitimidade de tipo pedagógico.» (pp.113,114)
∙ «Uma segunda linha genealógica sobre que se fundaria o devir do ensino artístico, no sentido da especificidade, está relacionada com a estabilização consensual do perfil do músico, como correspondendo a um actor social situado acima e fora dos condicionamentos comuns, e a uma visão da cultura como correspondendo a uma função de auto-encantamento.» (pp.116, 256)
∙ «Há que referir que, no que respeita ao tema da aptidão, as Ciências da Educação construíram uma tecnologia e uma base conceptual-experimental – que o século XX viu vulgarizar-se e disseminar-se por todos os continentes e realidades educativas as mais diversas, mesmo que as suas premissas nos possam parecer hoje datadas e obsoletas –, mas que permaneceu totalmente estranha a quem mais a invocava para estruturar um modelo específico de aprendizagem, ou seja, para os responsáveis pelo ensino da Música. Esta recusa, e disso se trata, deve ser entendida como correspondendo à operacionalização da proposição segundo a qual a natureza do artista só pode ser perceptível e inteligível por um outro seu equivalente. Um mundo de sujeitos iluminados que se contemplam e avaliam entre si, permanecendo inteiramente imunes à análise e avaliação dos profanos. O manto de silêncio científico que cobre esta realidade do exame das aptidões musicais parece-nos que aponta no sentido de que passem desapercebidas as condições históricas, sociais – em grande medida arbitrárias – sobre que foi efectivamente construída.» (p.117)
∙ «Numa linguagem psicanalítica poderíamos dizer que esta é, porventura, a zona cega ou discursivamente não pensada dos procedimentos práticos neste sector educativo.» (P.117)
∙ «O Mito Do Ensino Individualizado» (p.117)
∙ «Esta incursão é particularmente importante porque tornará mais inteligíveis as restantes rubricas que se seguem, uma vez que se tornará óbvio que, embora tratando de realidades diferentes entre si, na configuração que entre elas se estabelece mais se aprofunda e evidencia a distância em relação a Portugal, único país em que não existem sinais de que o ensino artístico se pretende regenerar e transformar em direcção ao futuro, já pela ausência de debate político, já pela desertificação no campo das propostas pedagógicas.» (p.219)
∙ (…) Esta posição viria a concretizar-se numa desvalorização explícita das aprendizagens técnicas em favor de uma formação de tipo espiritual do aluno, mas que só vagamente se enunciaria. Em contrapartida, passou a defender-se, também entre nós, o que Pierre Bourdieu e Alain Darbel (1969: 161-166) apelidaram de “mito do gosto inato”, que nada deveria às “restrições das aprendizagens e os acasos das influências”, já que seria dado desde o nascimento. A tese subjacente adivinha-se facilmente e corresponde a uma ilusão recorrente nos dias de hoje: a de que uma natureza culta preexistiria à educação ou de que a experiência da graça estética estaria perfeitamente liberta das restrições da cultura e muito pouco marcada pela longa paciência das aprendizagens.» (p.256)
∙ «A deriva que acabamos de fazer nesta secção justifica-se pela necessidade para explicitar a forma como, no que respeita ao tema da aptidão, as Ciências da Educação construíram uma tecnologia e uma base conceptual-experimental – que o século XX viu vulgarizar-se e disseminar-se por todos os continentes e realidades educativas as mais diversas, mesmo que as suas premissas nos possam parecer hoje datadas e obsoletas –, mas que permaneceu totalmente estranha a quem mais a invocava para estruturar um modelo específico de aprendizagem, ou seja, para os responsáveis pelo o ensino da Música. Esta recusa, e disso se trata, deve ser entendida como correspondendo à operacionalização da proposição segundo a qual a natureza do artista só pode ser perceptível e inteligível por um outro seu equivalente. Um mundo de sujeitos iluminados que se contemplam e avaliam entre si, permanecendo inteiramente imunes à análise e avaliação dos profanos. O manto de silêncio científico que cobre esta realidade do exame das aptidões musicais parece-nos que aponta no sentido de que passem desapercebidas as condições históricas, sociais – em grande medida arbitrárias – sobre que foi efectivamente construída. (p.263)
Relativamente à génese e essência deste trabalho ressaltam, de forma gritante, outros pressupostos de pendor negativista que, aliados ao atrás exposto, desconstroem e quase ridicularizam a acção até hoje desenvolvida especialmente pelos profissionais ligados à música e que sugerem uma completa ruptura com o passado do qual os actuais músicos também são fruto e que muitos nomes de reconhecido mérito artístico a nível nacional e internacional também formou. Passam a citar-se algumas dessas intenções:
• «O facto de este estudo de avaliação chamar a atenção para aspectos negativos ou disfuncionais, particularmente no que se refere ao ensino público da Música e da Dança, resulta das evidências empíricas encontradas e destina-se a induzir medidas que melhorem o actual estado das coisas. Esta é uma função da avaliação: tornar visível o que não funciona ou que está a funcionar mal para que se possam tomar as medidas necessárias para que passe a funcionar ou para que passe a funcionar melhor.» (p.23)
O facto de se tentarem induzir medidas que melhorem o actual estado das coisas é absolutamente crucial e pertinente o que, por outro lado, não parece ser correcto é tentar fazê-lo partindo da premissa negativista, à custa exclusiva da visibilidade do que não funciona ou o que está a funcionar mal, ignorando uma das vertentes mais pertinentes e pedagógicas da própria avaliação: "tornar também visível o que funciona, o que já funciona bem, para que daí se possam retirar ensinamentos para que o que ainda não funciona passe a funcionar melhor".
Relativamente ao valor das evidências empíricas, não poderá deixar de registar-se a definição do adjectivo "empírico" constante em qualquer dicionário de língua portuguesa - «Empírico - baseado na experiência vulgar ou imediata, não metódica nem racionalmente interpretada e organizada.» - e que por si só define a importância e fidelidade que se deve atribuir a esse mesmo tipo de evidências. O uso do mesmo adjectivo é recorrente durante todo o relatório.
• A equipa que elaborou o presente estudo, a propósito da sua natureza, refere que o que estava em causa era produzir um trabalho que permitisse retratar a organização e funcionamento do ensino artístico de forma a contribuir para a tomada de decisões de política educativa nessa área. Com essa orientação geral, a referida equipa decidiu que o estudo se deveria apoiar: «(...) tanto quanto possível, em dados estatísticos existentes, em dados empíricos recolhidos directamente pela equipa, em dados empíricos constantes em estudos realizados anteriormente e numa grande variedade de documentação que, de algum modo, dissesse respeito ao ensino artístico especializado» (p.6)
• O termo que é utilizado repetidamente para designar o grande objectivo deste estudo - "refundar" (o ensino especializado não superior da música ) - levanta também algumas dúvidas do ponto de vista do seu significado. Da consulta de dois dicionários diferentes (Dicionário da língua portuguesa da Porto Editora, 5ª edição e Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto António Houaiss de Lexicografia, 1ª edição) puderam obter-se, respectivamente as seguintes definições de "refundar": «tornar mais fundo; profundar» (que significa tornar fundo ou profundo; escavar) e «tornar mais fundo, afundar, profundar, aprofundar». Como se pode facilmente verificar, a escolha deste verbo não parece obedecer a qualquer tipo de lógica do ponto de vista semântico.
Da leitura atenta do documento o que parece transparecer em relação ao uso deste termo, que só aplicado em relação à música, é uma manifesta vontade/intenção de reiniciar todo um processo, de novo, com uma assumida ruptura e cisão com o passado. Tal intenção é manifestamente expressa na seguinte afirmação: «Importa pois romper com este retraimento da memória e avançar para discussões que tenham em conta o horizonte e os bloqueios em que tem decorrido a nossa experiência, no que respeita à formação artística do escolar português.» (pp. 13, 14)
• Existem também algumas outras imprecisões que levaram a que não se conseguisse sequer perceber o que realmente estava a ser pretendido, em temáticas tão importantes como a questão do regime de frequência e dos resultados do próprio estudo, que a seguir se transcrevem: «(...) o regime de frequência dos alunos, que deverá ser obrigatória e essencialmente integrado (...) (p.26)»; «Os resultados do estudo sugerem que existem condições objectivas e subjectivas para que os cursos do ensino artístico especializado e os cursos de natureza artística em geral possam estar ao alcance de um maior número de alunos do ensino básico e secundário.» (p.37)
• Relativamente a este relatório transcreve-se também o seguinte: «Os dados obtidos directamente pela equipa junto das escolas e os que entretanto os serviços do Ministério da Educação foram sendo capazes e reunir, permitiram retratar com rigor o essencial das realidades relativas ao ensino artístico especializado; ou seja, permitiram elaborar análises e interpretações fundamentadas dos fenómenos de interesse para as finalidades que se pretendiam alcançar através deste estudo.» (p.4); «As opções metodológicas tiveram naturalmente em conta a natureza do problema de avaliação e as respectivas finalidades do estudo.» (p.9)
• Relativamente à metodologia não deixa de ser interessante reflectir e tentar interpretar o seguinte: «Em termos gerais utilizou-se uma metodologia eclética de avaliação, livre de qualquer ortodoxia teórica, filosófica ou metodológica, sendo por isso apenas limitada pelos propósitos do estudo.» (p.10)
• Apesar de no relatório ser referido que «a recolha de informação se baseou nas seguintes estratégias principais: a) inquéritos por questionário e entrevista (individual e em grupo), b) consultas mais ou menos formais junto de uma diversidade de participantes (e.g., especialistas, técnicos superiores da administração, professores, investigadores) (...) (pp.9,10) e «(...) sintetizam-se agora ideias e perspectivas veiculadas pelos responsáveis dos conservatórios e por grupos seleccionados dos seus professores relativamente ao desenvolvimento do ensino artístico.) (p.67). A docente que realiza a presente reflexão crítica lecciona num dos seis conservatórios públicos portugueses e nem ela nem nenhum dos docentes do seu departamento, cerca de vinte, conheciam a possibilidade de participação, não foram convidados ou sequer conheciam alguém que o tenha feito.
• Um dos aspectos muito referido neste trabalho é o suposto significado que os músicos portugueses atribuem a "talento", transparecendo a ideia que o uso de tal termo está unicamente reservado a essa classe profissional como se fosse um devaneio ou quase "fetiche" a que somente o músico português se continua a agarrar, que serão estes os únicos que o utilizam e que nem sequer entendem ou conseguem justificar. É uma palavra que aparece frequentemente no relatório entre aspas, sendo-lhe frequentemente pervertido o entendimento que os músicos têm dela. O que é curioso é que na parte do estudo comparativo do ensino artístico entre cinco países, escolhidos criteriosamente pelos autores, a mesma palavra "talento" apareça na terminologia desses mesmos países, sem qualquer espécie de comentário, como é natural, e de muitos outros não constantes neste estudo mas que qualquer consulta online pode facilmente confirmar. Consta também nesta parte do trabalho o seguinte: «(...) onde se concentra uma bolsa de escolas direccionada para alunos com talentos excepcionais (...)» (p.222) e «(...) a que podem apenas aceder alunos particularmente vocacionados» (p.224) e destas vezes sem o recurso ao uso de aspas.
• Devem também denunciar-se dados que não podem ser considerados correctos, bem como deduções que não são justificadas, fundamentadas ou sequer possíveis através do constante no documento.
O quadro 2. (p.143), que se refere ao número de alunos por curso e regime de frequência em 2005/2006 nas escolas públicas de ensino vocacional, pode servir como exemplo, de entre muitos outros, para o atrás referido. Quando é dito que este quadro «permite ainda constatar uma maior percentagem de alunos em regime supletivo em todas as escolas (...)» pode-se facilmente, pela leitura do mesmo, depreender que esta afirmação é verdadeira. Já o que se segue «(...) excepto o Conservatório de Braga, cujo número de alunos neste regime é muito residual. Assim, e do total de 3.329 alunos, 82% (2.746) estava no regime supletivo, 13% (430) no integrado e 5% (153) no articulado, estes dois últimos com pouca expressão nestas escolas.». O Conservatório de Braga, pela leitura do quadro apresentado, tem um total de 453 alunos, distribuídos pelos regimes integrado e supletivo. Constata-se que o curso supletivo é inexistente na iniciação e no curso básico, logo, o número de alunos destes cursos não pode, de forma alguma, ser tido em conta ou considerado para amostra nesta comparação. O que se pode afirmar e constatar é o seguinte: O regime supletivo no Conservatório de Braga tem um total de 95 alunos no curso complementar, dos quais 61.1% (58) frequentam o regime supletivo e 38.9% (37) o regime integrado. Logo, o número de alunos supletivos neste estabelecimento de ensino, além de não ser residual, é claramente superior em percentagem ao do regime integrado.
Além do atrás exposto, é também evidente que este estabelecimento de ensino, ao não ter cursos básicos em regime supletivo, está a difundir uma política que não considera os alunos neste tipo de regime. A oferta formativa dada aos alunos supletivos é insuficiente pois só contempla os três últimos anos - correspondentes ao curso complementar. Para se ingressar num curso complementar é necessário ter um curso básico completo (excepção feita ao curso de Canto, em todos os estabelecimentos de ensino à excepção, precisamente, deste). Como pode um aluno ingressar nesta escola se não pode ter acesso a formação básica e progressiva que assim lho permita?
O Curso de Canto, especificidades e o regime supletivo
«O desenvolvimento da voz acompanha e representa o desenvolvimento do indivíduo, tanto do ponto de vista físico como psicológico (...)» (O Especialista da Voz, M. Belhau:2001, 1ª edição, p.57)
O estudo do Canto em relação ao dos outros instrumentos tem uma especificidade que é o facto de necessitar de que quem o estuda tenha alcançado a maturidade físico-vocal (que acompanha o processo de crescimento) plena. Isto acontece, normalmente, aos 16 anos nas meninas e aos 18 anos nos rapazes.
A idade tardia, comparativamente aos outros instrumentos, a que se inicia o estudo do Canto deveria ser considerada, nunca como um condicionalismo mas, como uma inerência e especificidade resultantes de um desenvolvimento físico e emocional necessário que não se pode, nem deve, tentar antecipar.
Importa também esclarecer que quando se referem estes aspectos particulares do estudo do Canto não se está a fazer alusão ao Canto Coral. Está a referir-se o estudo do Canto lírico, individual e individualizante, na perspectiva solística cuja formação contempla, em Portugal e em todo o mundo: Árias Antigas, Ópera, Oratório, Lied, Melodie, Música Portuguesa, etc.; produção vocal de inúmeros compositores, representativa de todos os períodos da história da música, em diversos idiomas; textos de um elevado grau de complexidade, de Baudelaire, Goethe ou de Fernado Pessoa (entre muitos outros), com temáticas muitas vezes sensíveis que vão, por exemplo, desde a morte à maternidade/paternidade, da sedução à traição ou à fidelidade eterna. A abordagem de todos estes aspectos requer uma exigência técnico-interpretativa elevadíssima que pressupõe uma maturidade do ponto de vista físico-emocional correspondente.
É pelos motivos atrás expostos que se defende que o Curso de Canto deve incluir-se essencialmente no regime de frequência Supletivo. A experiência pessoal da autora, de 12 anos de prática como professora de Canto, nos dois regimes de frequência, Supletivo e Integrado, só lhe permitiu encontar uma única aluna que reunia as condições necessárias à frequência do Curso de Canto no regime Integrado. Pensa-se, então, que se deve manter também a possibilidade de frequência nesse regime, mas a título excepcional e sempre sujeita a uma avaliação prévia por parte de professores com formação específica na matéria.
Acaba de se identificar uma das especificidades inerentes ao curso de canto, tornando-se facilmente compreensível que, de facto, as especificidades entre cursos dentro de uma mesma área - neste caso a música - existem. É também facil de entender que uma especificidade entre cursos de uma mesma área gera problemas que, por serem mais aproximados, serão mais facilmente resolúveis e é por isso mesmo, entre outros aspectos, que diferentes cursos incluem um mesmo grupo ou área comum - por terem algo similar, que os une identifica e aproxima. A divisão e definição entre diferentes áreas e cursos (e as inerentes especificidades) não é algo de que se possa falar de "ânimo leve" ou tentar superficialmente explicar ou comprovar. Se o conseguíssemos, teríamos dado resposta a domínios importantíssimos com que os filósofos/pensadores se ocupam desde há mais de 2000 mil anos, bem como áreas tão importantes e complexas como são as da Filosofia da Arte e da Estética.
Voltando aos regimes de frequência, a problemática inerente ao Canto não é o único motivo pelo qual se defende a manutenção dos actuais três regimes (supletivo, articulado e integrado) de frequência do ensino especializado da música. Esses regimes, se forem desenvolvidos e aperfeiçoados, podem dar resposta a diferentes solicitações e expectativas de formação por parte dos diferentres alunos que pretendem aprender música na sua vertente de formação específica (profissionalizante ou não).