(...) E agora, para mais, ficara lá um homenzinho a fazer música clássica...
- É o meu amigo Cruges!
- Ah! é seu amigo? Pois olhe, devia-lhe ter dito que tocasse antes o «Pirolito».
- Vossa Excelência aflige-me com esse desdém pelos grandes mestres... Não quer que a vá acompanhar á carruagem? Paciência... Muito boa noite, Sr.ª D. Joana!... Um servo seu, senhora baronesa! E Deus lhe tire a sua dor de cabeça!
Ela voltou-se ainda no degrau, para o ameaçar risonhamente com o leque:
- Não seja impostor! O sr. Ega não acredita em Deus.
- Perdão... Que o Diabo lhe tire a sua dor de cabeça, senhora baronesa!
O velho democrata desaparecera discretamente. E da antessala Ega avistou logo ao fundo, no tablado, sobre um mocho muito baixo que lhe fazia roçar pelo chão as longas abas da casaca - o Cruges, com o nariz bicudo contra o caderno da Sonata, martelando sabiamente o teclado. Foi então subindo em pontas de pés pela coxia tapetada de vermelho, agora desafogada, quase vazia: um ar mais fresco circulava: as senhoras, cansadas, bocejavam por traz dos leques.
Parou junto de D. Maria da Cunha, apertada na mesma fila com todo um rancho intimo, a marquesa de Soutal, as duas Pedrosos, a Teresa Darque. E a boa D. Maria tocou-lhe logo no braço para saber quem era aquele músico de cabeleira.
- Um amigo meu, murmurou Ega. Um grande maestro, o Cruges.
O Cruges... O nome correu entre as senhoras, que o não conheciam. E era composição dele, aquela coisa triste?
- É de Beethoven, sr.ª D. Maria da Cunha, a «Sonata Patética».
Uma das Pedrosos não percebera bem o nome da Sonata. E a marquesa de Soutal, muito séria, muito bela, cheirando devagar um frasquinho de sais, disse que era a «Sonata Pateta».
Por toda a bancada foi um rastilho de risos sufocados. A «Sonata Pateta»! Aquilo parecia divino!
Da extremidade o Vargas gordo, o das corridas, estendeu a face enorme, imberbe e cor de papoula:
- Muito bem, senhora marquesa, muito catita!
Eça de Queiroz, Os Maias
Da primeira leitura de "Os Maias" (ainda na escola, no meu 9º ano, princípio dos anos 80) ficou-me na memória esta hilariante passagem. Na altura a situação descrita nos Maias, tremendamente parecida com a realidade dos acontecimentos culturais da época e sua fauna, parecia-me totalmente real e nada ficcional. Portanto, de Eça para lá (no meu 9º ano) e de lá para cá nada parece ter mudado. Continuo a encontrar senhoras destas nos happenings portugueses.
- É o meu amigo Cruges!
- Ah! é seu amigo? Pois olhe, devia-lhe ter dito que tocasse antes o «Pirolito».
- Vossa Excelência aflige-me com esse desdém pelos grandes mestres... Não quer que a vá acompanhar á carruagem? Paciência... Muito boa noite, Sr.ª D. Joana!... Um servo seu, senhora baronesa! E Deus lhe tire a sua dor de cabeça!
Ela voltou-se ainda no degrau, para o ameaçar risonhamente com o leque:
- Não seja impostor! O sr. Ega não acredita em Deus.
- Perdão... Que o Diabo lhe tire a sua dor de cabeça, senhora baronesa!
O velho democrata desaparecera discretamente. E da antessala Ega avistou logo ao fundo, no tablado, sobre um mocho muito baixo que lhe fazia roçar pelo chão as longas abas da casaca - o Cruges, com o nariz bicudo contra o caderno da Sonata, martelando sabiamente o teclado. Foi então subindo em pontas de pés pela coxia tapetada de vermelho, agora desafogada, quase vazia: um ar mais fresco circulava: as senhoras, cansadas, bocejavam por traz dos leques.
Parou junto de D. Maria da Cunha, apertada na mesma fila com todo um rancho intimo, a marquesa de Soutal, as duas Pedrosos, a Teresa Darque. E a boa D. Maria tocou-lhe logo no braço para saber quem era aquele músico de cabeleira.
- Um amigo meu, murmurou Ega. Um grande maestro, o Cruges.
O Cruges... O nome correu entre as senhoras, que o não conheciam. E era composição dele, aquela coisa triste?
- É de Beethoven, sr.ª D. Maria da Cunha, a «Sonata Patética».
Uma das Pedrosos não percebera bem o nome da Sonata. E a marquesa de Soutal, muito séria, muito bela, cheirando devagar um frasquinho de sais, disse que era a «Sonata Pateta».
Por toda a bancada foi um rastilho de risos sufocados. A «Sonata Pateta»! Aquilo parecia divino!
Da extremidade o Vargas gordo, o das corridas, estendeu a face enorme, imberbe e cor de papoula:
- Muito bem, senhora marquesa, muito catita!
Eça de Queiroz, Os Maias
Da primeira leitura de "Os Maias" (ainda na escola, no meu 9º ano, princípio dos anos 80) ficou-me na memória esta hilariante passagem. Na altura a situação descrita nos Maias, tremendamente parecida com a realidade dos acontecimentos culturais da época e sua fauna, parecia-me totalmente real e nada ficcional. Portanto, de Eça para lá (no meu 9º ano) e de lá para cá nada parece ter mudado. Continuo a encontrar senhoras destas nos happenings portugueses.
Isto faz-me lembrar a primeira vez que fui assistir a um concerto na capital, há alguns anos atrás. O pianista era Pollini e começou o recital com as op. 11 de Schoenberg. Um par de senhoras à minha frente com cabelos armados especialmente arranjados para o momento diziam em voz alta despreocupada: "quando é que ele vai parar com estas modernices e começa a tocar Chopin? Não foi para isto que viemos."
ResponderEliminarEste ano passou-se o mesmo, desta vez com Daniel Barenboim e o concerto de Shoenberg.
Só nos falta o Eça, porque o resto continua na mesma.
Eu não ousei dizer mas pensei o mesmo que essas senhoras de cabelo armado quando o Pollini tocou Stockhausen...
ResponderEliminarDizer que são "modernices" já mostra reconhecer alguma coisa ;-)
Se calhar, para que o Eça deixasse de ser actual, era preciso apostar na música na formação de todos NO ENSINO GERAAAAAAAL...
Então aquele imenso público que cantava com o Bob MacFerrin a Ave Maria de cor, debaixo de chuva, andou todo em conservatórios?? É verdade que muitos andaram, não porque quisessem ser músicos mas porque, na europa civilizada, fazer uma formação de conservatório faz parte da FORMAÇÃO GERAL das pessoas.
Não é por acaso que MUITOS filhos de emigrantes que eu conheço aqui na Suíça andam no conservatório e tocam violino, piano ou flauta... coisa a que não teriam acesso nem muito menos lhes passaria pela cabeça o desejo se não tivessem saído de Portugal...
São crianças que já foram educadas noutro contexto e os pais, a maioria com poucos estudos e não percebendo a mínima do que os filhos andam a fazer, investem e compram instrumentos! E vão levar os filhos às academias depois de vir das limpezas ou das obras... É obra, penso eu. E dão o devido valor a essa actividade, não é para entreter. É tão importante como o resto. Mas é obra da educação que envolve estas crianças, do meio onde vivem, do que lhes é mostrado na escola, do que vêem nos outros, das oportunidades criadas, da valorização dessa componente na formação geral de todos.
Ora bolas! Que merda de país de onde é preciso sair para um operário e uma mulher a dias terem direito a ouvirem o filho tocar piano em casa! A irem ver os filhos, TODOS OS FINAIS DE ANO, sem excepção, cantar em coro na melhor casa de espectáculos da cidade, todas as escolas básicas e secundárias reunidas. A comprarem os cd's que cada classe de música produz anualmente nas escolas de ensino geral!
Bolas. Estou farta de ouvir falar de Portugal. Não sei o que é preciso fazer, não sei se a culpa é sempre dos governantes, não sei o que andámos a fazer desde o 25 de Abril de 1974. Só sei que é uma tristeza continuarmos a criticar a ignorância e o faz de conta da senhorecas que vão aos concertos porque é de bom tom.
Se a ESCOLA PÚBLICA E O ENSINO GERAL não formam público, daqui a duzentos anos estará tudo na mesma!
.
ResponderEliminar.
.
Mas porque é que tudo CONTINUA NA MESMA??
Expliquem-me, que eu não percebo, porque é que os portugueses, à parte os períodos revolucionários, dizem que tudo continua na mesma?? Há qualquer falha estrutural nos portugueses que não consigo entender. É má sina?? Porque já são muitas décadas! Já é demais!
Pois eu gostei muito, do Stockhausen, não é que ele seja muito moderno, mas gostei... :(
ResponderEliminarQue merda de país mesmo! O problema dos portugueses é que pensam como portuguses e (não) agem como portugueses. Vou pôr o teu comentário na linha da frente!
ResponderEliminarhttp://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1295996&idCanal=74
ResponderEliminarNotícias de última hora
Concordo com os vossos comentários acerca de algum público que pulula por aí, mas convenhamos que, relativamente à musica do século XX, pouco se tem feito para a divulgar de forma coerente. O normal é não aceitar facilmente aquilo que é diferente e a música tonal tem sido bem mais divulgada (até nas escolas de música!). A minha filha frequenta o 3º ano de História da Música e, até este momento, ainda não falou de Stockhausen ou Schoenberg. Claro que tem uma boa professora de instrumento e toca obras do século XX com frequência. Mas quando se continua a insistir só no ensino da música antiga... até nem acho estranhas algumas situações que observo em concertos...
ResponderEliminarCara AP, muito brevemente nem o 3º ano de história da música se poderá frequentar porque vai deixar de existir. OU melhor, já não existe. O que a substitui chama-se: história das artes e da cultura e tem a duração de um único ano lectivo, não me diga que não sabia!
ResponderEliminarÉ verdade...
ResponderEliminara ser verdade (tenho sempre esperança) esse tipo de disciplinas vai desaparecer!
Verdade acho que é. Já vi essa publicação algures no Diário da Republica. Acho eu que não tem volta, a menos que se arrependam...
ResponderEliminar