segunda-feira, 4 de junho de 2007

Sonata Pateta

(...) E agora, para mais, ficara lá um homenzinho a fazer música clássica...
- É o meu amigo Cruges!
- Ah! é seu amigo? Pois olhe, devia-lhe ter dito que tocasse antes o «Pirolito».
- Vossa Excelência aflige-me com esse desdém pelos grandes mestres... Não quer que a vá acompanhar á carruagem? Paciência... Muito boa noite, Sr.ª D. Joana!... Um servo seu, senhora baronesa! E Deus lhe tire a sua dor de cabeça!
Ela voltou-se ainda no degrau, para o ameaçar risonhamente com o leque:
- Não seja impostor! O sr. Ega não acredita em Deus.
- Perdão... Que o Diabo lhe tire a sua dor de cabeça, senhora baronesa!
O velho democrata desaparecera discretamente. E da antessala Ega avistou logo ao fundo, no tablado, sobre um mocho muito baixo que lhe fazia roçar pelo chão as longas abas da casaca - o Cruges, com o nariz bicudo contra o caderno da Sonata, martelando sabiamente o teclado. Foi então subindo em pontas de pés pela coxia tapetada de vermelho, agora desafogada, quase vazia: um ar mais fresco circulava: as senhoras, cansadas, bocejavam por traz dos leques.
Parou junto de D. Maria da Cunha, apertada na mesma fila com todo um rancho intimo, a marquesa de Soutal, as duas Pedrosos, a Teresa Darque. E a boa D. Maria tocou-lhe logo no braço para saber quem era aquele músico de cabeleira.
- Um amigo meu, murmurou Ega. Um grande maestro, o Cruges.
O Cruges... O nome correu entre as senhoras, que o não conheciam. E era composição dele, aquela coisa triste?
- É de Beethoven, sr.ª D. Maria da Cunha, a «Sonata Patética».
Uma das Pedrosos não percebera bem o nome da Sonata. E a marquesa de Soutal, muito séria, muito bela, cheirando devagar um frasquinho de sais, disse que era a «Sonata Pateta».
Por toda a bancada foi um rastilho de risos sufocados. A «Sonata Pateta»! Aquilo parecia divino!
Da extremidade o Vargas gordo, o das corridas, estendeu a face enorme, imberbe e cor de papoula:
- Muito bem, senhora marquesa, muito catita!

Eça de Queiroz, Os Maias



Da primeira leitura de "Os Maias" (ainda na escola, no meu 9º ano, princípio dos anos 80) ficou-me na memória esta hilariante passagem. Na altura a situação descrita nos Maias, tremendamente parecida com a realidade dos acontecimentos culturais da época e sua fauna, parecia-me totalmente real e nada ficcional. Portanto, de Eça para lá (no meu 9º ano) e de lá para cá nada parece ter mudado. Continuo a encontrar senhoras destas nos happenings portugueses.

10 comentários:

  1. Isto faz-me lembrar a primeira vez que fui assistir a um concerto na capital, há alguns anos atrás. O pianista era Pollini e começou o recital com as op. 11 de Schoenberg. Um par de senhoras à minha frente com cabelos armados especialmente arranjados para o momento diziam em voz alta despreocupada: "quando é que ele vai parar com estas modernices e começa a tocar Chopin? Não foi para isto que viemos."
    Este ano passou-se o mesmo, desta vez com Daniel Barenboim e o concerto de Shoenberg.
    Só nos falta o Eça, porque o resto continua na mesma.

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  2. Eu não ousei dizer mas pensei o mesmo que essas senhoras de cabelo armado quando o Pollini tocou Stockhausen...
    Dizer que são "modernices" já mostra reconhecer alguma coisa ;-)

    Se calhar, para que o Eça deixasse de ser actual, era preciso apostar na música na formação de todos NO ENSINO GERAAAAAAAL...
    Então aquele imenso público que cantava com o Bob MacFerrin a Ave Maria de cor, debaixo de chuva, andou todo em conservatórios?? É verdade que muitos andaram, não porque quisessem ser músicos mas porque, na europa civilizada, fazer uma formação de conservatório faz parte da FORMAÇÃO GERAL das pessoas.

    Não é por acaso que MUITOS filhos de emigrantes que eu conheço aqui na Suíça andam no conservatório e tocam violino, piano ou flauta... coisa a que não teriam acesso nem muito menos lhes passaria pela cabeça o desejo se não tivessem saído de Portugal...
    São crianças que já foram educadas noutro contexto e os pais, a maioria com poucos estudos e não percebendo a mínima do que os filhos andam a fazer, investem e compram instrumentos! E vão levar os filhos às academias depois de vir das limpezas ou das obras... É obra, penso eu. E dão o devido valor a essa actividade, não é para entreter. É tão importante como o resto. Mas é obra da educação que envolve estas crianças, do meio onde vivem, do que lhes é mostrado na escola, do que vêem nos outros, das oportunidades criadas, da valorização dessa componente na formação geral de todos.

    Ora bolas! Que merda de país de onde é preciso sair para um operário e uma mulher a dias terem direito a ouvirem o filho tocar piano em casa! A irem ver os filhos, TODOS OS FINAIS DE ANO, sem excepção, cantar em coro na melhor casa de espectáculos da cidade, todas as escolas básicas e secundárias reunidas. A comprarem os cd's que cada classe de música produz anualmente nas escolas de ensino geral!

    Bolas. Estou farta de ouvir falar de Portugal. Não sei o que é preciso fazer, não sei se a culpa é sempre dos governantes, não sei o que andámos a fazer desde o 25 de Abril de 1974. Só sei que é uma tristeza continuarmos a criticar a ignorância e o faz de conta da senhorecas que vão aos concertos porque é de bom tom.
    Se a ESCOLA PÚBLICA E O ENSINO GERAL não formam público, daqui a duzentos anos estará tudo na mesma!

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  3. .
    .
    .
    Mas porque é que tudo CONTINUA NA MESMA??
    Expliquem-me, que eu não percebo, porque é que os portugueses, à parte os períodos revolucionários, dizem que tudo continua na mesma?? Há qualquer falha estrutural nos portugueses que não consigo entender. É má sina?? Porque já são muitas décadas! Já é demais!

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  4. Pois eu gostei muito, do Stockhausen, não é que ele seja muito moderno, mas gostei... :(

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  5. Que merda de país mesmo! O problema dos portugueses é que pensam como portuguses e (não) agem como portugueses. Vou pôr o teu comentário na linha da frente!

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  6. http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1295996&idCanal=74

    Notícias de última hora

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  7. Concordo com os vossos comentários acerca de algum público que pulula por aí, mas convenhamos que, relativamente à musica do século XX, pouco se tem feito para a divulgar de forma coerente. O normal é não aceitar facilmente aquilo que é diferente e a música tonal tem sido bem mais divulgada (até nas escolas de música!). A minha filha frequenta o 3º ano de História da Música e, até este momento, ainda não falou de Stockhausen ou Schoenberg. Claro que tem uma boa professora de instrumento e toca obras do século XX com frequência. Mas quando se continua a insistir só no ensino da música antiga... até nem acho estranhas algumas situações que observo em concertos...

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  8. Cara AP, muito brevemente nem o 3º ano de história da música se poderá frequentar porque vai deixar de existir. OU melhor, já não existe. O que a substitui chama-se: história das artes e da cultura e tem a duração de um único ano lectivo, não me diga que não sabia!

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  9. É verdade...
    a ser verdade (tenho sempre esperança) esse tipo de disciplinas vai desaparecer!

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  10. Verdade acho que é. Já vi essa publicação algures no Diário da Republica. Acho eu que não tem volta, a menos que se arrependam...

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