domingo, 29 de maio de 2005

crise e pacificação (dominante e tónica)

São conhecidas as interpretações da música tonal como um sistema em que, dada a tonalidade inicial, toda a composição se apresenta como um sistema de dilações e de crises propositadamente provocadas com o único objectivo de se poder restabelecer, com a confirmação final da tónica, uma situação de harmonia e paz, tanto mais apreciada quanto mais a crise foi prolongada e articulada. E é conhecido que se identificou neste hábito formativo o produto típico de uma sociedade baseada no respeito de uma ordem imutável das coisas: por isso a prática da música tonal convergia na reiteração de uma persuasão no plano teorético quer no plano das relações sociais. Evidentemente que uma relação de «espelhamento», posta em termos tão apertados, entre estrutura social e estrutura da linguagem, apresenta o risco de parecer uma generalização impossível de ser verificada; mas é também verdade que não é por acaso que a música tonal se afirma na época moderna como a música de uma comunidade ocasional, cimentada pelo ritual, do concerto, que exercita a própria sensibilidade estética em horas certas, com uma roupagem adequada, e paga um bilhete para gozar crise e pacificação de maneira a poder sair do templo com o espírito devidamente catartizado e as tensões resolvidas.

Umberto Eco, Obra aberta, 1962
2 Comments:
At Domingo, 29 Maio, 2005, sasfa said...
Pois... isso também pode explicar as dificuldades de afirmação da música contemporânea...

At Sexta-feira, 03 Junho, 2005, César Viana said...
Conheço bastante bem esta antiga obra do Eco. Esta passagem em particular parece-me infeliz ou, pelo menos, superficial. No caso da dominante em relação à tónica, falar em “crise” é desadequado, já que existe uma resolução única e inevitável - a tónica - e todos sabemos qual é ela. Podemos sim, e adequadamente, falar em tensão e resolução. Esta tensão, aliás, só existe porque todos sabemos qual é a resolução prevista, a “normalidade”. Crise seria uma situação onde todas as soluções fossem possíveis, mas isso é a antítese do sistema tonal. Acho que tónicas e dominantes não têm nada a ver com a aceitação da música contemporânea. Muitas vezes confundimos “consonante/dissonante”com “tonal/atonal” Existe música extremamente consonante em que não há vestígios de tonalidade (no sentido de direccionamento hierárquico) e música profundamente dissonante que é absolutament tonal. A comunicabilidade não se pode resumir a este tipo de factores. Toda a música era tonal no século XIX e as pessoas não gostavam de tudo! Penso que as grandes questões da comunicabilidade ou não da música contemporânea são um caldo em que terão de conviver carisma, inspiração, pertinência social e estética, educação exigente O Eco, que é um grande pensador, escreve por vezes sobre assuntos que domina menos e é então irritantemente disparatado (veja-se o fraquíssimo livro que saíu agora sobre traduções “Dizer quase a mesma coisa”).

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